sexta-feira, 21 de abril de 2017

ENCICLOPÉDIA ALEGRE DE BRUXAS E SUPERSTIÇÕES - Letras Q-R

Q
QUEBRANTO. Na farsa Quem tem farelos?, de mestre Gil Vicente, a determinado passo encontra-se a excomunhão: “Má cainça que te coma/ mau quebranto te quebrante”.
Este anátema possui característica inversa à das feromonas – nem sequer faz despertar o apetite sexual. O “quebrantado” ficará, pois, num estado de letargia, abúlico, febril e definhado.
O quebranto age como um vírus, talvez com o poder de “o pai de todos os vírus”, só lhe faltando um nome em latim e referência em simpósio farmacológico para se tornar mais respeitável entre os seus pares. De qualquer forma, sempre é mais fácil de pronunciar que enterobius vermiculares, uns vermes no vulgo alcunhados de lombrigas.

R
REUNIÕES. Segundo consta, podem realizar-se em qualquer lado, mesmo em salas multifuncionais com ar condicionado, projectores de tela, tradução simultânea e acesso à internet. O mais provável é que se dispensem esses requisitos e ocorram numa laje granítica, previamente limpa de detritos de rebanho, junto a uma encruzilhada de caminhos onde não haja sinalização de trânsito.
Já o calendário pia mais fino e é imutável nos dias de presença, sem hipótese para ausências justificadas, às terças e sextas feiras. Tratam-se assuntos que são postos dentro e fora da ordem do dia, lançando os seus discursos de elevado teor conceptual, permitindo-se considerandos, requerimentos e propostas, desde que contenham matéria conclusiva sobre a arte de embruxar toda a coisa.
Não levem a mal, mas como ainda não assisti a nenhuma, não asseguro se tudo isso se passa como em outras assembleias desassombradas. Também não me consta que se lavrem actas, relatórios ou meras resenhas sobre os assuntos agendados.
Ah! Não sei se as votações são por maioria simples ou por unanimidade, de braço no ar ou língua de fora; e sei também que as únicas geringonças permitidas são as vassouras de transporte.
Como é da praxe, reunião antes, estômago depois. É neste particular e em outros fora deste âmbito: quando se trata de seminários e outros arraiais congéneres, umas roucas e outras afónicas, as bruxas empanturram-se de comidas pouco recomendáveis e indigestas, com alto teor calórico. Mas é uma opção que as livra da conta exagerada e das gorjetas nos restaurantes.

S
SÁBADO. Dia das reuniões – o “sabat” – em que reúnem as bruxas com o bode dos “cornos grandes”, que desempenha funções equivalentes às de presidente do conselho de administração, e que preside à cerimónia numa encruzilhada de caminhos e em redor de um espinheiro. Esmeram-se na forma indecorosa como se vestem para a ocasião, narram façanhas, fumam charutos Montecristo (furtados na secretária de algum ministro ou de um banqueiro), falam das vítimas passadas e futuras e apresentam ao amo as neófitas de quem serão madrinhas.
As noviças, que possuem perfis no Linkedin, iniciam-se por renegar a religião e a existência de Deus, enquanto as madrinhas são recompensadas com moedas de ouro e prata, que terão de ser gastas no prazo de 24 horas, numa casa de bingo ou num supermercado, sob pena de desaparecerem em fumo.
Goethe e Victor Hugo tentaram-se pela descrição sabática nas suas obras e o pintor Jeronimus Bosch, em “As Tentações de Santo Antão”, colocou na tela um casal de bruxos que vai até ao “sabat” montado num peixe, o que constitui substituição do uso da tradicional vassoura.
SANCHO PANÇA. É o martirizado e incompreendido companheiro de D. Quixote, autor da máxima que outros parafraseiam - não creio em bruxarias, mas que as há, há.
Farto de ver coisas estapafúrdias, das quais e não menos significativa era um amo desaparafusado do juízo, o gordo e desajeitado escudeiro só lhe faltava acreditar em bruxas. Aliás o Sancho Pança era um pobre diabo que tinha um fôlego épico para aturar tanto disparate junto. Mas tantas e tais as mirabolantes contradanças e alucinações em que o seu amo se meteu, que o coitado passou a crer na existência daquilo que não cria, mas que nós cremos que ele cria.
SAPATOS. Agora habituei-me aos pés e aos sapatos sem atacadores, como ténis e mocassins, os que apertam com velcro e sandálias. Sapatos com atacadores, só para cerimónias e calça vincada. Por essa razão não me preocupo com a superstição que diz ser aziago calçar um dos pares com um atacador castanho e o outro com atacador preto, pois o castanho simboliza a terra da sepultura e o preto a escuridão da morte.
Na passagem de um ano para o outro, há quem se dê ao cuidado de colocar uma nota (no caso, o euro, no mínimo uma nota de cinco) dentro de um dos sapatos (de preferência, o direito), porque atrai mais dinheiro, uma vez que se acredita que a energia e a abundância entram pelos pés.
A propósito, também traz bom augúrio saltar com o pé direito, sem se incomodar muito com os euros aí escondidos, porque mais pisados do que estão pela Europa fora, é impossível. Acautele-se com o cheiro dos pés, principalmente se pretende posteriormente trocar a nota.

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